A Ópera da Ranhoca
ACTO ÚNICO
Cenário: quadro idílico de frio, vento, chuva, não-neve em Lisboa, folhas a cair, croissants de chocolate, cafés quentes, castanhas na rua.
Local: escritório calmo, amplo e escuro, sem sol. Pessoas atarefas, concentradíssimas, focadas, mas com dores de cabeça.
Narrador: esta é a história de um paraíso. Com pessoas. Com trabalho. Com sorrisos. Com conversas. Mas sobretudo (pausa) é a história de um paraíso cheio de lenços.
Lenços.
Oh.
Lenços.
Lenços de assoar.
Montes e montes de lenços.
Lenços na mala.
Lenços na secretária.
E o que trazem esses lenços?
Ranhoca.
A ranhoca verdoca e espessa.
A ranhoca não verdoca mas sim branca de quem tem um nariz que pinga.
A ranhoca não verdoca mas sim branca que fica na secretária com um espirro forte.
E o que é que a ranhoca faz?
Entope o nariz.
O nariz vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão.
O nariz vermelho que puxa a ranhoca para dentro para conseguir respirar.
O nariz vermelho que dá comichão e que se limpa com a manga da camisola.
E se não dá para respirar pelo nariz, respira-se por onde?
Pela boca.
A boca seca irritada do vento.
A boca seca que tosse e tosse a ver se o pulmão aguenta mais um dia.
Ou então a boca não seca, que não consegue produzir a voz porque tem a mucosa entalada.
A boca entalada pela mucosa que engole a mucosa.
A boca entalada pela mucosa que não engole a mucosa e quer deitar fora.
A boca entalada pela mucosa que não engole a mucosa, que quer deitar fora a mucosa e então puxa a mucosa para cima e tenta puxar pelo nariz mas depois deixa de respirar porque o nariz vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão está entupido pela ranhoca verdoca e espessa que fica no lenço em cima da secretária.
Puxa, atrapalha-se, não respira, tosse, sai ranhoca, sai mucosa, entra lenço sujo com ranhoca para absorver mais ranhoca, suja o nariz, limpa o nariz, coça o nariz, espirra, sai ranhoca branca, sai garganta, sai pulmão, sai tripas, sai tudo e DE REPENTE, CORRE-SE PARA A CASA DE BANHO E PUM FECHA-SE A PORTA.
Puxa-se o pulmão, a ranhoca sai a custo. Pronto, já acabou a tortura. Limpa-se a boca, as mãos, as mangas, o nariz.
E o sujeito volta à secretária. "Ai que estou a ficar doente".
E a tarde cai no escritório mas a sinfonia continua: espirranços, funganços e gargejanços, como uma orquestra em harmonia.
Sejam bem-vindos ao Inverno.